Eliane Borges, socióloga, professora universitária e pesquisadora em Educação e Tecnologias, traz em seu romance Na fresta entre os mundos uma profunda reflexão sobre as relações entre as pessoas e delas com o planeta, tudo isso a partir de saberes ancestrais. Inspirada pelas obras de Carlos Castañeda, a narrativa acompanha a jovem antropóloga Luísa em uma jornada de autoconhecimento no deserto do Novo México, nos anos 80. A obra, que combina elementos de filosofia, antropologia e espiritualidade, convida os leitores a uma peregrinação interior, refletindo sobre a vida e a conexão com a natureza.
Entrevista por Lauro Rocha
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Quando pergunto o que a inspirou a escrever Na fresta entre os mundos, Eliane Borges revela que:
Memórias. Foi num período da minha vida e carreira (sou professora universitária) em que precisei olhar para o meu passado e lá encontrei para além do que me formara academicamente todo um clima de um tempo jovem de reflexões sobre como somos constituídos como pessoas e um olhar ainda não vencido pelo mundo das coisas. Esse encontro me veio por meio de anotações, poemas, fotos encontrados meio que no fundo de um metafórico baú temporal e me falavam sobre alguém que naqueles momentos eu estava sendo. Dali saiu a necessidade de juntar essas memórias e transformá-las numa trajetória ficcional “do que poderia ter sido”.
Quando pergunto sobre a protagonista Luísa e como ela reflete suas próprias experiências e paixões, Eliane me diz que:
Luísa brotou, sim, de uma parte de minha trajetória como pessoa. Nesse sentido, tenho em comum com ela a enorme curiosidade pelas coisas e seus sentidos, a busca de conhecimento (e de sabedoria), um inconformismo com os modos banais com que o mundo nos é apresentado e um enorme desejo tanto de imanência como de transcendência e do ponto em que esses dois movimentos se encontram. Até aí, nesses elementos em comum, fui junto com Luísa. Depois, ao longo da narrativa, Luísa ganhou vida própria, criou sua própria história e esqueceu de mim… Acho que ela cresceu muito e agora fico até curiosa sobre suas escolhas, aprendizagens e novos caminhos…
Quando pergunto sobre o processo de pesquisa e escrita do livro, especialmente em relação aos saberes ancestrais e à obra de Carlos Castañeda, Eliane explica que:
Foi de fato um reencontro com a obra de Castañeda, mais particularmente com o livro Portal para o Infinito, que reli e fui recortando, separando passagens e pensamentos que serviriam para a construção mais conceitual do livro, bem como para formar o clima geral – cenários, personagens – da história. Fui costurando com outros autores, todos clássicos que tratam de espiritualidade como eu a compreendo. Aí apareceram citações taoístas, William Blake, Walt Whitman, por exemplo, ou acrescentando uma “pegada” mais antropológica. A ideia era mostrar que, entre outras coisas, os “saberes ancestrais” atravessam o mundo, o tempo e a literatura.
Ao perguntar sobre os desafios de trazer a aura espiritual do deserto do Novo México para a narrativa, Eliane comenta que:
A ideia de deserto sempre me foi atraente como a de um lugar onde só prevalece o essencial, onde as formas são definidas pelas luzes, um lugar de mistério. Então não foi difícil desenvolver uma história de conteúdo espiritual em um cenário de poucas coisas materiais e onde nada pode de fato ser escondido.
Quando questiono como a viagem de Luísa se transforma de um projeto acadêmico em uma experiência transformadora, Eliane esclarece que:
Luísa é uma buscadora, uma mente inquieta que procura significados e relações para além da aparência das coisas. Sua vida acadêmica é parte de uma jornada maior em busca de conhecimento, e o conhecimento (e a sabedoria) “nascem em muitos lugares” como dito no livro. Então, antropologia, fotografia e espiritualidade acabam se encontrando dentro dela.
Quando pergunto sobre a relação entre Luísa, Mateus e Fernando e como essas relações evoluem ao longo da história, Eliane revela que:
Cada um desses personagens encontra-se entre dois mundos. Fernando entre sua história e sua origem e as demandas da civilização na qual cresceu e que pede dele um olhar científico e racional sobre as coisas. Mateus vive as mesmas tensões, mas tende a resistir à perda de sua identidade como indígena e foca em “costurar” os dois mundos culturais e sociais. Luísa está de passagem, mais como testemunha desses conflitos, até porque carrega os seus que têm outro contexto e outra tessitura. Durante a história, essas tensões entre ciência e magia, ancestralidade e modernidade, que representam para cada um lutas identitárias que definem quem serão eles no mundo, vão vir à tona e conversar de maneira a que eles, os personagens, se conheçam mais e mais e se ajudem mutuamente a superar esses conflitos. A convivência estreita em um lugar diferente da realidade de vida costumeira, os interesses comuns e os bons sentimentos se conjugam para que todos busquem o melhor de cada um.
Quando pergunto como a filosofia e a sociologia são abordadas nos diálogos e na trama do livro, Eliane menciona que:
O livro não é acadêmico, propositadamente. Ele apresenta alguns conceitos mais profundos de maneira simples, clara e acessível. E, embora os personagens sejam pesquisadores e professores, suas reflexões se dão num contexto informal. Diria que, de certa forma, transitam na história questões antropológicas e filosóficas que brotam nos diálogos e na trama em geral de maneira natural, como fruto da curiosidade e da inquietude dos personagens.
Ao perguntar sobre as principais lições ou mensagens que espera que os leitores tirem desta jornada literária, Eliane destaca que:
Que ficando-se atento ao mundo interior e enxergando fora dele o espelho do que está dentro, adquire-se o poder de acessar outras dimensões, outros planos que sempre estiveram ao nosso alcance. Que é possível expandir nossa consciência para além da percepção da banalidade do cotidiano e encontrar novos sentidos para a vida. Que o universo é energia, nós somos energia e que nossos pensamentos, palavras e ações têm ressonância no mais profundo desse universo que é unidade e que dessa unidade fazemos parte e com ela compartilhamos a natureza. Que toda cura depende do corpo e depende da alma. Que somos infinitos, que temos o dom e a responsabilidade de nos expandirmos. E mais e mais…
Quando pergunto sobre a importância de refletir sobre as relações entre as pessoas e com o planeta na literatura contemporânea, Eliane pondera que:
Em tempos de racionalidade técnica, de valorização das aparências, da superficialidade e de relações sociais espetacularizadas, é urgente que se retome a percepção da conexão entre as coisas e entre as pessoas, da interdependência entre os fenômenos, de uma unidade subjacente a tudo e que cria, recria e sustenta a vida. Readquirir a percepção do sagrado em um mundo desencantado pela razão deve ser nossa maior tarefa. Penso que a literatura pode ter um papel muito importante nessa demanda, pela sua vocação ancestral de, contando histórias, colocar ordem e dar sentido ao mundo. Penso que é necessário que sejam boas as histórias contadas, de modo que contribuam para a construção de vidas e sociedades mais plenas e harmoniosas, em movimento oposto e de resistência às tantas coisas que nos fragmentam e desconstroem.
Quando pergunto sobre como suas próprias viagens e experiências influenciaram a criação do livro, Eliane compartilha que:
A mais relevante para o livro foi uma viagem à Califórnia, nos anos 90, enquanto eu estava ainda no mestrado. Visitei alguns locais considerados espirituais, como o monte Shasta, e fiquei encantada com o dourado das paisagens. Penso que possivelmente esse dourado tenha me ajudado a criar as imagens de Na fresta…. Há algumas menções a lugares pelos quais passei e, por sorte minha, alguns personagens surgiram de lembranças dos meus deslocamentos, como Mateus, inspirado em um amigo mexicano que conheci em Paris há muitos anos. Mas o mais importante certamente foram minhas viagens interiores que deram o movimento e os argumentos à história no livro.
Ao questioná-la sobre seus novos projetos literários, Eliane revela que:
Sim, estou escrevendo sobre uma pequena livraria onde vai acontecendo, por meio de situações e personagens, a revelação do meu amor pelos livros e pela importância que tiveram em minha vida. Acredito que estarei presente em cada um dos personagens que lá se encontram e convivem, mas de maneira bem discreta. Está sendo muito divertido e espero conseguir colocar na história algumas das principais questões que, na minha percepção, atravessam a relação do livro com o leitor.
Por fim, quando pergunto como tem sido a recepção dos leitores até agora, Eliane comenta que:
Muito gratificante. Tenho tido retorno de pessoas de dentro e de fora do meu mundo acadêmico que tiveram boas experiências na leitura de Na fresta entre os mundos. Desde elogios à capa até a fluidez da escrita e da leitura, passando pelo conteúdo descrito como muito inspirador da narrativa.